Giovana - Primeira Parte

PRIMEIRA PARTE

A estrada estava tranquila, sem trânsito algum. Faziam algumas horas que os dois haviam deixado Porto Alegre para trás. Depois de algum tempo conversando com Eugênio, decidiram que iriam para São Paulo. Ambos gostavam de praia e ainda poderiam passar por Florianópolis (depois de Mari insistir muito).

A garota estava se sentindo em um filme de Hollywood. A música tocava alto no rádio, ela sentia o vento jogar seus cabelos para trás enquanto Eugênio cantarolava a letra da música com ela. Quando eles fizeram uma parada no posto para abastecer e ir ao banheiro, Mari se ofereceu para dirigir uma parte do trajeto.

“Não precisa, tá tudo bem.”

Ela franziu a testa com a resposta. Faziam seis horas que estavam dirigindo, eram quatro horas da tarde, mas eles nem haviam visto o tempo passar.

“Eu dirijo até Florianópolis e paramos para passar a noite.” – falou ela conferindo o mapa no GPS.

Eugênio ainda contrariado, assentiu, rendido. Seriam três horas de viagem. Marianna tomou controle do carro e ligou o motor. Ao entrar na estrada se sentiu completa. A paisagem corria por eles e logo o sol ia baixando, dando um lindo tom de roxo alaranjado ao céu. O tempo passou voando. Quando avistaram a placa de “bem-vindos”, decidiram começar a procurar uma pousada.

Ao entrar no quarto, se depararam com uma cama de casal e aquilo os deixou desconfortáveis por um momento. Mari então lembrou que conhecia Eugênio a poucas semanas e agora estava fugindo de uma vampira com ele. Ficou com medo de ter confiado nele com tanta facilidade. Ele podia muito bem ter sequestrado ela e nunca mais ouviriam falar dela. Agradeceu profundamente nada disso ter acontecido e jogou a mochila em cima da cama.

“Eu fico com o lado da janela.”

Eugênio soltou uma risada.

“Tudo bem, pelo menos o sol não vai bater na minha cara de manhã.”

Mari revirou os olhos. Estava cansada e com fome. Abriu a mochila e tirou um pacote de cookies.

“Ei, guarde isso pra comer durante a viagem.”

“Você tem alguma ideia melhor?”

Ele assentiu e pegou a carteira.

“Venha comigo.”

A garota o seguiu e eles saíram para a rua movimentada. A cidade era linda. Santa Catarina já tinha conseguido conquistar seus corações. O crepúsculo deixava os prédios mais bonitos do que deviam ser a luz do dia. Os moradores andavam pelas ruas no seu cotidiano e tudo parecia poesia para seus olhos. Andaram um pouco até encontrarem um restaurante. Mari sorriu com a ideia de que teoricamente estava saindo pra jantar com aquele garoto.

O local estava cheio. Eles escolheram uma das poucas mesas vazias e o garçom veio os atender. Pediram massa carbonara e vinho tinto. Estava tudo delicioso. Eles conversaram muito. Sobre coisas que gostavam de fazer, infância, família e músicas favoritas. Até que começaram a pensar o que fariam quando chegassem ao destino daquela viagem.

Perceberam que não tinham planos. Não conheciam o local, não sabiam as oportunidades que encontrariam. Não sabiam nem onde iam morar. Depois de beber mais uma taça, voltaram para a pousada. Mari sentou na cama para tirar os tênis e Eugênio se escorou na parede para olhá-la. Quando ela percebeu, sorriu.

“Quinze dias atrás eu observava você de longe, cada movimento. E hoje estamos aqui, fugindo juntos para São Paulo.”

Mari levantou, parou na frente dele e ele beijou os lábios dela. Ela respondeu, ainda insegura. Ele esperou.

“Boa noite.”

E foi dormir. Eugênio não conseguiu segurar um sorriso. Apagou as luzes e foi dormir também. No outro dia, os dois acordaram tarde. Além de não terem ligado o despertador, seus celulares acabaram sem bateria porque não os colocaram para carregar. Sem saber a hora, levantaram e foram rumo ao carro vermelho.

Com os cabelos embaraçados do dia anterior, Mari os prendeu em um rabo de cavalo e sentou no banco do carona. A viagem voltou a acontecer. Os dois lamentaram não poderem ficar. Havia tanta coisa legal pra fazer ali, tantos lugares para conhecer… Mas juraram voltar assim que pudessem.

“Como anda a sua cicatriz?”

Mari lembrou que Morgana se alimentava de Eugênio e ficou preocupada.

“Está bem. Quero dizer, ela é muito aparente e ainda vai demorar pra sair por inteiro, mas eu posso viver com isso. Além do mais, as pessoas irão pensar que foi você que fez isso.”

“Elas irão?”

Ele riu.

“Claro. Quando virem você junto comigo...”

Ela assentiu arqueando as sobrancelhas.

“Certo. Acho que posso viver com isso também.”

Ele riu novamente.

“Meio selvagem. Para apimentar a relação.”

Dessa vez Mari não conseguiu segurar o riso e entrou na brincadeira.

“Se você gosta, posso tentar da próxima vez.”

“Eu adoraria ver.”

Os dois estavam começando a se apegar. Ele adorava a forma com que ela via as coisas, e ela adorava o senso de humor dele. Dessa vez, eles dirigiram apenas três horas e pararam porque Mari insistiu.

“Deixe-me dirigir. Venha pro banco do carona descansar. Você parece exausto.”

Depois de muito negar, Eugênio cedeu e se atirou no banco, jogando a cabeça no encosto. Depois de abastecer e irem ao banheiro de um posto na estrada, Mari deu a partida. Logo em seguida Eugênio se encontrava adormecido no banco ao lado. Duas horas passaram rápido. Logo eles já estavam em Guarujá. Mari deu um cutucão em Eugênio que acordou meio desnorteado.

“Chegamos.”

Ele levantou os olhos ao passarem pelo painel que tinha o nome da cidade e se endireitou no banco, esfregando os olhos. Estacionaram na frente de um conjunto de lojinhas e desceram. Mortos de fome, pararam em um café. Eugênio empurrou a porta para que a garota passasse e entrou logo atrás.

Mari encarou o cardápio por alguns segundos e já sabia o que pedir.

“Um pretzel de muzzarela e um capuccino.”

Eugênio pediu uma pizza e um chá gelado. Enquanto esperavam, ele tirou o celular do bolso, abriu o mapa e colocou na mesa entre os dois.

“Certo. Precisamos achar um local para ficar até encontrarmos um apartamento para alugar e acertar a papelada. Você quer mesmo fazer isso?” – ele começou – “Quer dizer, é muita coisa que deve ser difícil pra você. Morar com um estranho…”

A garota apertou os lábios.

“Você tem razão…” – disse e ele ficou cabisbaixo – “Mas que mal pode acontecer?”

“Quem sabe um vam…” – ele disse diminuindo o tom de voz assim que o garçom chegou com os pedidos – “Vampiro.” – mexeu os lábios quando ficaram sozinhos novamente, olhando para os lados para se certificar, dessa vez.

“Estamos muito longe deles.” – ela riu, confiante – “E eu sei me proteger...”

Eugênio deu de ombros e bebeu um gole de chá.

“Tudo bem. Você venceu.”

“...Mas eu estava falando de você.”

Ele largou a xícara na mesa e cerrou os olhos.

“Você está certa em desconfiar de mim.” – disse o garoto, finalmente – “Eu não dei nenhum motivo para não fazer, não é mesmo? Aliás, essa viagem pode muito bem ser um sequestro mascarado…” – continuou pensando em voz alta.

Marianna mordeu o lábio ouvindo aquilo e assentiu, levantando as sobrancelhas. Os dois ficaram em silêncio por um momento se encarando e depois riram da ideia.

“Começamos por onde?”

Sem saber o que responder, Mari fitou o mapa. Enquanto isso, Eugênio terminou seu chá e abaixou o celular da frente do rosto da garota para que ela o olhasse.

“Falando sério agora: eu não vou fazer nada que você não queira, tá bem? Podemos até ficar em quartos separados se você não…”

“Ei, tá tudo bem. Eu to tranquila sobre isso. E você?” – ela o interrompeu.

Ele sorriu tirando a mão do celular e voltou a encostar as costas na cadeira.

“Eu? Eu to ótimo.” – respondeu, satisfeito.

Depois de pagar a conta, os dois saíram para a rua e olharam para os lados. Estava escurecendo. Precisavam de algum lugar para ficar, urgente. Do outro lado da rua havia uma pousada. Eles atravessaram e entraram pela porta de madeira crua. No balcão da recepção, um homem os recebeu e fez o cadastro. Quando chegaram ao quarto, cansados, Mari deitou na cama, de barriga pra cima e viu Eugênio tirar a camisa e o tênis. Ela se sentou e ficou sem palavras por alguns segundos.

“Vou tomar banho, tá? Não fuja.” – ele riu e foi ao banheiro.

Ainda perplexa, Mari tirou o tênis também e escorou as costas na cabeceira da cama, ligando a televisão. Quando o garoto voltou, vestido novamente e secando o cabelo na toalha, se aproximou olhando para a televisão, entediado. Antes que começasse a falar, ela o puxou pela gola da camiseta para perto e o beijou.

As primeiras semanas foram tranquilas. Conseguiram alugar um apartamento mobiliado, um trabalho numa lancheria e uma matrícula numa Universidade próxima dali. Era muito bom pra ser verdade. Nos fins de semana visitavam a praia ou iam comer fora. Quando o primeiro mês completou, Mari finalmente pôde relaxar. Combinou de encontrar Eugênio no final da aula para os dois almoçarem juntos e ali estava ele.

“Como foi?” – ele perguntou depois te ter a cumprimentado com um beijo.

“A prova? Uma vergonha. O professor pegou a gente nas descritivas. Acho que não vou muito bem… E você?” – os dois começaram a andar para o estacionamento.

“Barbada.” – sorriu e deu de ombros.

“Isso é motivo para comemoração! Merece um fast-food.”

Eles riram e saíram pela rua cheia de estudantes indo para suas casas. Ao chegarem no fast-food mais próximo, pediram um hambúrguer grande, refrigerante e batatas. Eugênio foi buscá-los no balcão e quando chegou alcançou uma batata na boca de Mari. Ao se sentarem, ele franziu a testa.

“A quantidade de batatas está desproporcional. Eu ganhei menos que você.”

“É sério que você está fazendo essa birra?”

“To falando sério. Me dê um pouco das suas.”

Revirando os olhos, Mari tirou um punhado do pacote e percebeu algo estranho no meio delas. Largou-as na bandeja e fitou um anel prateado. Levantou o olhar para Eugênio e ele estava sorrindo que nem bobo.

“Mas o que…”

“Você aceita?” – ele disse depois de tomar um gole de refrigerante – “Namorar comigo e essas coisas.” explicou, sem jeito, dando de ombros.

A garota pegou o anel e sorriu. Ele havia sido bem criativo. Não soube muito o que pensar, apenas um “sim” ecoava em sua cabeça.

“Mas é óbvio, ué!” – ela riu levantando os braços e puxando-o para beijá-lo.

O então namorado, pegou o anel e colocou no dedo dela. Ela deu um soquinho no braço dele enquanto ele dava a primeira mordida no hambúrguer.

“Você planejou tudo.”

“Na verdade… Não. Eu estava a um tempo querendo fazer o pedido, mas não sabia como. Quando vi as batatas a primeira coisa que pensei foi colocar o anel em uma delas, mas achei meio idiota…” – revelou.

Mari olhou pro anel em seu dedo e tomou um gole da bebida gelada. E depois de eles terem uma tarde ótima, foram trabalhar. Ela queria mostrar pra todo mundo a novidade, mas lembrou que ainda não tinha muitos amigos por ali. Até que uma garota apareceu. Seu rosto era familiar, mas não lembrava de onde a conhecia. Seus cabelos enrolados e longos eram negros. Ela estava debruçada sobre o balcão da lancheria, mexendo uma colher pequena dentro de uma xícara de café. Eugênio, que estava no caixa, nem reparou. Mari se aproximou dela silenciosamente.

“Bonito o seu anel.”

Mari podia jurar que não viu a garota levantar a cabeça em nenhum momento para ver o anel em sua mão, mas mesmo assim não pôde evitar de sorrir.

“Obrigada.” – e sem querer lançou um olhar para Eugênio.

Por um momento se perdeu no rapaz, olhando seu olhar atento sobre as cédulas que contava e depois fazia anotações cautelosamente sobre um bloco de notas. A garota seguiu o olhar, tomou o último gole de café e Mari recolheu a xícara em seguida para levar à cozinha. Quando voltou, ela não estava mais ali.

O padeiro então trouxe alguns croissants e folhados para colocar na vitrine do balcão. Mari ajeitou-os de uma forma que ficasse esteticamente bonita e, quando se levantou, levou um susto. A garota estava ali novamente.

“Desculpe.” – disse desajeitada, se sentando em um dos banquinhos – “Esse croissant parece estar delicioso.”

Mari assentiu enquanto passava um pano sobre o vidro e fitava aqueles doces e salgados tentadores.

“Quais são os sabores?”

“Tem de queijo, chocolate, calabresa e frango.”

“Que tal o de chocolate?”

Ao abrir a vitrine e pegar o doce folhado, olhou discretamente a garota. Sentia algo estranho, mas não sabia explicar o que. Colocou num pratinho de porcelana e pegou a comanda que estava no balcão. Procurou urgentemente pelo nome e encontrou no topo direito “Giovana”. Com um meio sorriso, estendeu o lanche para ela. Após servi-la, andou até as mesas recolhendo migalhas, levando as louças sujas para a cozinha.

Sempre que podia, lançava um olhar para a garota. Acompanhou-a limpar a boca com o guardanapo, deixar uma gorjeta na mesa e ir embora sem olhar pra trás. Lentamente andou até a mesa, recolheu o dinheiro e levou até Eugênio, pensativa. Ele pegou as moedas, colocou na caixa registradora, anotou no caderno e depois a olhou.

“Tá tudo bem?”

Mari assentiu sem prestar atenção, ainda pensando muitas coisas sobre aquela garota.

“Ei, o que houve?” – ele segurou os ombros dela

Ela piscou várias vezes e levantou os olhos pra ele, saindo do transe.

“O que? Eu… Tá. Tá sim.”

E, se esquivando dos braços do namorado, foi pra cozinha. Pelo resto do dia evitou falar sobre aquele momento, mas quando o turno acabou e os dois foram a pé pra casa, ela não conseguiu fingir que estava tudo bem. E óbvio que ele percebeu.

"Certo, você vai me contar o que está acontecendo? É alguma coisa comigo?"

Ela revirou os olhos sorrindo e esperou entrarem em casa, seguros e sozinhos, para responder.

"Eu acho que encontrei uma vampira."

O garoto não piscou por alguns segundos, mas depois relaxou e começou a tirar a roupa do trabalho pra colocar algo mais confortável.

"Você está traumatizada ainda com tudo o que passou. Não deve ser nada, apenas coisa da sua cabeça. Está cansada. Deite e relaxe. Vou buscar algo pra gente comer."

Eugênio deu um beijo na testa dela e, já vestido com uma bermuda e uma regata, saiu porta a fora colocando a carteira no bolso. Mari jogou seu corpo na cama tentando fazer o que o namorado sugeriu, porém tudo o que vinha em sua cabeça eram imagens de dentes pontiagudos, mordidas, sangue, corpos drenados... Levantou, foi ao banheiro lavar o rosto e voltou para deitar na cama assim como o namorado havia sugerido.

Encarou o teto, roendo a unha, e pegou o celular, encarando a tela bloqueada. No plano de fundo, uma foto dela e de Eugênio. Sorriu e se dispersou pensando sobre eles, esquecendo o assunto da vampira por um momento. Alguns minutos se passaram e ela ouviu uma batida na porta. Se aproximando lentamente e silenciosamente do abajur, segurou-o com as duas mãos e estremeceu até que uma voz falou.

"Pode me ajudar aqui? Jesus. Não acredito que ela dormiu..." – ouviu Eugênio falar.

Com uma risada nervosa, largou o abajur, correu até a porta ficando na ponta do pé pra olhar pelo olho mágico e destrancou. Com as duas mãos ocupadas, ele entrou e largou os dois pacotes em cima do móvel da televisão e deu um beijo na testa dela.

"Como está?"

Ela suspirou, sentiu o aroma da comida e sorriu.

"Bem melhor."

Assentindo, ele abriu os pacotes e tirou embalagens de alumínio. Em cada uma havia uma parte do jantar. Massa, bife, salada, molho, ovo frito. E em dois saquinhos separados, os talheres. Mari reparou que não havia nada pra tomar, porém não quis falar. Eugênio já havia feito o bastante por eles. Pegou a garrafa de água em cima do criado–mudo e quando olhou de volta, ele segurava uma garrafa de vinho.

“Por isso que eu te amo.” – riu e deram um selinho

Depois de jantar, assistiram um pouco de televisão e adormeceram.

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